sábado, 18 de agosto de 2012

Como a matemática funciona - Parte 3

Da última vez, nós vimos que se a é menor que b e b é menor que c, então a é menor que c, ou de modo mais matemático, se c, então c.
Esta afirmação matemática, não apenas é intuitiva, mas também é fácil de se provar, e nós fizemos isso de duas maneiras diferentes. Existem outras afirmações matemáticas, que também são bastante intuitivas, todos nós usamos sem perceber durante toda a vida na escola, e até fora dela. Vou colocar algumas delas abaixo.

Considere três números, a, b, c.

ADIÇÃO                                                    MULTIPLICAÇÃO
a + ( b + c ) = ( a + b ) + c                         • ( b • c ) = ( a • b )  c
a + 0 = a                                                   • 1 = a
a + (- a) = 0                                                1/a = 1   ( a não pode ser zero neste caso)
a + b = b + a                                              b = b • a 

ADIÇÃO E MULTIPLICAÇÃO
 ( b + c ) =  a • b  +   c 


Concordo que pra quem nunca viu isso antes, pode parecer uma tábua de mandamentos matemáticos. Mas aos céticos, recomendo que façam testes à vontade, procure por contradições, tentem ao máximo. Depois de muito testar, além de não encontrar nenhuma contradição, vocês vão perceber que estas afirmações são coisas óbvias que sempre foram tomadas como verdade enquanto vocês faziam contas na escola. Algumas delas, como a + 0 = a, são óbvias demais para merecerem ser testadas.

A beleza matemática reside no fato de que praticamente tudo que nós vimos de matemática na escola, se baseia apenas nestes "mandamentos", você não precisa de mais nada, esta é a origem de tudo! Você pode literalmente esquecer tudo a respeito de PA, PG, log, exponenciação, raízes, frações, etc. Não importa, se você tiver em mente este pequeno pacote de mandamentos, é possível descobrir tudo sozinho, como se você estivesse criando a matemática novamente.

Estes "mandamentos", são o que os matemáticos chamam de "axiomas". Os axiomas são as afirmações iniciais, são o ponto de partida para criar matemática. Qualquer teorema que existe tem os axiomas como ponto de partida. Uma coisa interessante dos axiomas é que apesar de serem naturais e intuitivos, eles não são provados, então neste sentido, você pode mesmo vê-los como mandamentos.

Como exemplo, vou mostrar como descobrir um teorema a partir dos axiomas acima.
Talvez alguém tenha notado que não coloquei uma afirmação extremamente óbvia como axioma, estou falando de a • 0 = 0. Se eu não coloquei esta afirmação junto com os outros axiomas, então deve ser possível concluir ela a partir dos axiomas, vamos lá.

Eu sei que " ( b + c ) = a • b +  c" é um axioma, não importa quais sejam os números, então eu posso fazer b = 0 e c = 1, o que será que sai disso?

 a • 0 +  1  =  ( 01 )              Axioma de Adição e Multiplicação 
  ( 0 + 1 ) =   ( 1 )                    Resolvendo  0 + 1, que é igual à 1, pelo axioma  a + 0 = a 
 a  ( 1 ) =  1                              Retirando os parênteses
  1 = a                                       Axioma de Multiplicação • 1 = a

Eu comecei em  a • 0 +  1  e cheguei até a, através de igualdades e usando os axiomas, então estas duas expressões são iguais.

 a • 0 +  1 = a

Usando o axioma de multiplicação  1 = a, a equação fica assim:

a • 0 +  = a

Eu posso adicionar -a nos dois lados da equação, e a coisa fica assim:

( a • 0 + a ) + (-a) = a + (-a)               
 a • 0 + ( a + (-a) ) = a + (-a)               Primeiro Axioma de Adição no lado esquerdo
 a • 0 + 0 = 0                                     Axioma de Adição a + (- a) = 0 nos dois lados
 a • 0 = 0                                          Axioma de Adição a + 0 = a no lado esquerdo

Pronto! Provamos que a • 0 = 0, usando os axiomas dados no início.                      

E é assim que a matemática funciona. Cada pequeno passo é justificado, de modo que não há dúvidas de que ele seja válido. Por isso quando alguém afirma que a • 0 = 0, é porque é isso mesmo, está provado, é irrefutável. E claro, a partir de agora podemos usar este fato como se fosse um axioma se quisermos provar outra coisa futuramente. Quanto mais fatos formos provando, mais vamos nos distanciando dos axiomas, até que chega a um ponto em que você nem mais usa os axiomas. A ideia é justamente essa, nós partimos de uma base segura, que são os axiomas, e dali vamos andando, cada vez para mais longe, cada vez mais alto, entrando em mundos fantásticos, onde ninguém poderia imaginar que seria possível chegar ao ver aqueles axiomas tão simplórios e inocentes.
Espero ter dado uma ideia de como as coisas funcionam, e espero que tenha sido interessante ver as coisas neste nível.

Note que ainda falta rigor na minha prova dada acima. Vou deixar algumas perguntas em aberto, propositalmente, para fazer você pensar, refletir, quem sabe filosofar um pouco, e espero que se empolgue para se aprofundar na matemática, assim como eu e tantos outros fazem por aí.

1) Quando eu disse "Considere três números, a, b, c". O que eu quero dizer com "números" ?
O que são números?

2) Na primeira linha da prova de a • 0 = 0, eu coloquei "a • 0 +  1  =  ( 0 +1 )" e disse que usei o axioma de multiplicação e adição. Mas eu escrevi a igualdade ao contrário, você notou?
O que eu deixei implícito é a seguinte afirmação "se A = B, então B = A", mas por que isso é válido? Caso queira pesquisar, comece vendo a lógica da Antiga Grécia.

3) O início da prova foi feita através de uma sequência de igualdades, que posso resumir como "a • 0 +   ( 0 + 1 ) =  ( 1 ) = a", daí eu concluí que a • 0 + a a. Mas por que em uma sequência de igualdades a primeira expressão pode ser igual à última? Esta questão também tem a ver com a lógica da Antiga Grécia.

4) Eu usei parênteses do início ao fim, mas como funcionam os parênteses? Eu simplesmente deixei implícito que todos entendem como funciona, e tenho certeza de que quando escrevi
 "( a • 0 + a ) + (-a) = a + (-a)" algumas pessoas podem ter estranhado.

5) Eu disse que "posso adicionar -a nos dois lados da equação", mas será que posso mesmo? Por que eu posso? Isso pode ser provado a partir dos axiomas, e eu não provei de propósito. Você notou esse buraco que eu deixei?

Encerro por aqui a saga "Como a matemática funciona", deixando alguns deveres de casa.
Boa diversão!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Como a matemática funciona - Parte 2

"Olá" para todos os leitores! Estamos de volta para continuar o assunto que começamos há alguns meses atrás.

Eu queria provar que "se a é menor que b e b é menor que c, então a é menor que c", que é uma afirmação que fica mais clara se escrevermos "se a < b e b < c, então a < c". Vimos também o que significava um número ser menor que outro, em termos matemáticos, e como verificar isso matematicamente.

Então vamos lá, dizer que o número a é menor que b significa que existe um número p de modo que a + p = b, e b ser menor que c, significa que existe um outro número, que vou chamar de q, de modo que b + q = c. Lembre-se que tanto p quanto q devem ser positivos.

Vou mostrar que a partir destas hipóteses é necessário acontecer a < c, e vou fazer isso por dois caminhos diferentes:

1º caminho: nossas duas hipóteses são as duas equações a + p = b  e  b + q = c. Pegue a primeira equação e some o número q nos dois lados, ficamos então com
a + b + q. Sabemos que b + q é igual à c, por causa da segunda hipótese, então podemos trocar b + q por  c, e assim ficamos com c. Posso fazer = r, aí ficamos com a + r = c, como r é um número positivo ( pois é a soma de dois positivos ), podemos concluir que o número a é menor que o número c, ou seja, a < c, e isso era justamente o que esperávamos concluir.

2º caminho: podemos isolar b na equação b + q = c, ficando com b = c - q, pegamos este resultado e substituímos na equação a + p = b, aí ficamos com a + p = c - q, jogando q para o outro lado temos que a + p + q = c. Fazemos a substituição p + q = r, aí ficamos com a + r = c. Como r é positivo, temos que a é menor que c, ou seja, a < c.

Claro que estes não são os dois únicos modos de se provar esta afirmação, mas são dois modos simples, o que é o suficiente para nós neste momento. Espero tudo até agora esteja claro, caso contrário, escreva um comentário para que eu possa esclarecer melhor o que foi feito.

Bom, este exemplo foi simples e intuitivo o suficiente para que qualquer um conseguisse prever a conclusão antes mesmo de eu prová-la ( mas ainda assim tivemos que usar diversas letras, o que pode ter sido um pouco trabalhoso para o leitor pouco acostumado à matemática neste nível de abstração ). Isso foi proposital, e eu fiz isso apenas como um passo inicial, para mostrar como estas noções simples podem ir longe com um pouco de esforço, paciência, engenhosidade e criatividade ( sim, existe criatividade na matemática, mais do que muita gente imagina ).
Vou dar uma parada por aqui, na próxima vez iremos dar o próximo passo e ver o que mais podemos fazer a partir destas noções simples.

Um Abraço!

terça-feira, 10 de abril de 2012

Como a matemática funciona - Parte 1

Eu pretendo dar uma ideia aqui de como as coisas são feitas na matemática. Afinal, é comum ter gente achando a matemática exagerada e complicada demais. O interessante é que as ideias que deram base a diversos conceitos matemáticos são bastante simples, a complicação que existe é consequência natural destas ideias simples, as pessoas simplesmente foram descobrindo, ninguém complicou propositadamente ou quis inventar um conceito ultra-avançado e abstrato.

Já que é pra falar de ideias simples, vou falar sobre um assunto simples, que são os números, e a partir disso vamos vendo como as coisas vão evoluindo.

Para começar, vamos considerar três números que são arbitrários e desconhecidos, podemos chamá-los de a,b,c. Eu estou partindo da hipótese de que quem está lendo isso já superou a fase de ter dificuldade com letras no lugar de números. Pois bem, temos estes três números, observe a seguinte afirmação: "se a é menor que b e b é menor que c, então a é menor que c."

É tão óbvio que a afirmação é verdadeira que seria exagero dizer que é necessário provar que ela é verdadeira mesmo, mas esse é o ponto, é necessário provar. Na matemática, qualquer coisa que você afirma ser verdade tem que ser verdade mesmo, e o único modo de garantir isso é provando que é verdade. Então vamos lá!

"Bom...ahhnnn....po...é obvio, não precisa!"
Este é o tipo de coisa que muita gente poderia dizer, outro tipo de "argumento" que muitos poderiam dizer é o seguinte:
"Tenta achar três números que não estão de acordo! Não achou né, então é verdade mesmo."
Este último argumento, muito cuidado com ele, não prova nada pois existem infinitos números pra conferir e pode acontecer de que apenas números enormes não estejam de acordo, ou que existam alguns números bem específicos que não estejam de acordo. Enfim, este argumento pede que a pessoa faça a verificação e tente achar algum caso que não esteja de acordo com a afirmação dada, mas a verificação deve ser completa, pois a afirmação fala de TODOS os números.

PS: Este argumento é usado em outras situações também, geralmente como artifício pra ganhar alguma discussão. É importante deixar claro que o argumento só é válido quando é possível verificar todos os casos.

Mas voltando à matemática, conseguiu pensar em algo?
Antes de tentar provar qualquer coisa, é necessário saber do que estamos falando.
Aqui vem uma coisa interessante, o que quer dizer um número ser menor que outro? Eu sei que todos tem essa noção, mas como colocamos esta noção em forma de matemática?
O que muitos devem ter pensado: "dizer que a é menor que b é o mesmo que a < b". De fato, é assim que se simboliza matematicamente. Podemos então reformular a afirmação:
"se a < b e b < c, então a < c". Pra quem está acostumado com esta notação, fica até mais fácil ler assim do que ler por extenso como foi colocado no início, mas quando dizem que um número é menor que outro, você não pensa apenas nestes símbolos, você realmente possui uma intuição sobre o assunto, talvez você até consiga visualizar o que é um número ser menor que outro. Pode ser que explicar precisamente não seja fácil, mas você sabe o que quer dizer um número ser menor que outro.

Um modo comum e altamente intuitivo de visualizar os números é imaginá-los sobre uma reta, como uma régua.





O número 1, por exemplo, é menor que o número 4, vendo pelo desenho, isso quer dizer que se estamos no 1 e queremos chegar ao 4, precisamos "andar" para a direita do 1, até chegar ao 4.




O que significa "andar para a direita" neste contexto? Se eu ando para a direita, os números aumentam, se eu ando para a esquerda, eles diminuem. Matematicamente, o que estou fazendo com os números?
Pra quem disse ou pensou em soma e subtração, meus parabéns, estou te devendo uma bala! Pois é exatamente isso o que acontece, se eu estou no número 1 e andei para a direita, é o mesmo que dizer que eu somei algum número ao 1, e se fui para a esquerda, quer dizer que subtraí algum número do 1. Resumindo a história:
Andar pra direita do 1: 1 + algum número.
Andar pra esquerda do 1: 1 - algum número.

Concluindo, se o número 1 é menor que o número 4 é porque eu preciso somar algum número ao número 1 pra chegar a 4, ou seja, 1 < 4 pois 1 + algum número = 4. Não pretendo ficar escrevendo "algum número" toda hora, então sempre que eu for me referir a este número, vou escrevê-lo como p. Posso então reformular o que disse acima de um modo mais simples: dizer que 1 < 4 é o mesmo que dizer que 1 + p = 4.
PS: está implícito que p é positivo, pois a quantidade de "passos" que damos a partir do 1 é positiva.

Então eu passei de "1 é menor que 4", que é a linguagem humana, para " 1 < 4", que é a linguagem matemática mas não resolve nada ( é apenas uma tradução ), e finalmente para
"1 + p = 4", que é ainda na linguagem matemática, mas é mais que uma tradução pois envolve uma equação que pode ser resolvida e interpretada como verdadeira ou falsa, nos dando um parecer sobre a afirmação.
Por exemplo, se eu disser que 4 < 1, é o mesmo que dizer que 4 + p = 1, com p positivo, então resolvemos a equação.

4 + p = 1
p = 1 - 4
p = -3

Opa! Deu algum erro aí, porque p deveria ser positivo, mas as contas estão certas, então o erro só pode ter sido lá no início, quando eu afirmei que 4 < 1.

Então este modo de caracterizar números maiores e menores permite sempre uma verificação precisa, fora isso, observe que eu trouxe o conceito de maiores e menores para a resolução de problemas que envolvem apenas contas de somas e subtrações, então essa caracterização além de verificável é a mais simples possível ( quer algo mais simples que somar e subtrair? ). Ainda mais, essa caracterização veio de observações totalmente intuitivas a respeito dos números, então ela é uma tradução direta de como nós mesmos observamos os números e suas relações de tamanho, talvez ela seja o modo mais simples e compreensível para nós, seres humanos.

Quem leu até aqui, com paciência e refletindo sobre o que foi dito, deve ter notado a simplicidade que foi buscada para definir a noção de números menores, evitando redundâncias, ambiguidades ou complicações. É assim que a matemática opera, ela busca a essência das estruturas abstratas que operam nas nossas mentes e as traz à tona, de um modo completamente preciso e manipulável ( dentro da matemática ). Todas as complicações, acredite se quiser, vem naturalmente como consequências lógicas dessas coisas simples e inocentes.
O leitor atento deve ter notado que eu não provei ainda a afirmação que dei no início. Como eu disse, primeiro é necessário saber do que estamos falando. Agora nós estamos sabendo, mas a continuação ficará para a próxima vez!
Um abraço!